Foto: Getty Images |
Muito se tem discutido sobre o árbitro assistente de vídeo (do inglês VAR – Video Assistant Referee) e a influência desta tecnologia na Copa do Mundo da Rússia. Neste post vamos destrinchar como a novidade não pode cumprir seu papel sozinha e, ao mesmo tempo, porque a figura humana não será diminuída por conta dessa implantação, com base na teoria ator-rede, iniciada na década de 80, na qual teve como um dos principais responsáveis o antropólogo francês Bruno Latour.
Sendo assim, a princípio, temos
que entender o que é um objeto (ou um artefato). Pensar que um objeto é apenas
uma ferramenta não é nada absurdo. Consequentemente, é comum imaginar que essa
é a essência do objeto. Todavia, um item não é apenas uma mera ferramenta ou
meio para realizar uma ação imaginada e, consequentemente, fabricada com este
fim. De acordo com a teoria ator-rede, os objetos
não possuem essência e, desse modo, podem exercer diferentes papeis a depender
das associações criadas.
Dessa forma, nesta teoria, o ator
é definido a partir do papel que desempenha nas relações onde estão envolvidos,
sendo que os atores podem ser seres vivos, materiais ou instituições. Por conta
dessa variedade de opções que podem desempenhar a função de ator, em conteúdos
dessa teoria muitas vezes é utilizado o termo “actante”, pois é visto como uma forma
neutra e
evita a relação de que os agentes só podem ser humanos. Já a rede representa as
conexões onde os atores estão envolvidos.
Actantes humanos e não humanos
(dispositivo inteligente) agem mutuamente e influenciam no comportamento um do
outro, com a diferença que o actante não humano pode ser ajustado pelo humano
de acordo com a necessidade dele. Ou seja, já que um pode influenciar no
comportamento do outro, o objeto pode alterar a forma de pensar e agir do
humano. Por conta disso, o objeto, nesse caso o videoárbitro, deve modificar a
performance não só dos jogadores em campo como também o desempenho do árbitro principal.
A partir de agora, em competições
em que o VAR é utilizado, os jogadores deverão pensar duas vezes para agir
dentro da grande área – não só os defensores como também os atacantes. Isso
vale até mesmo para a própria performance que se deve fazer ao sofrer um
pênalti. Na partida desta Copa do Mundo entre Brasil e Costa Rica, por exemplo,
um pênalti, que foi considerado legítimo por muitos comentaristas, não foi
marcado em Neymar. O árbitro principal recorreu à visualização na tela e negou
a penalidade máxima. A justificativa dos que defendiam a existência da falta?
Neymar abriu muito os braços e isso confundiu a arbitragem, dando a entender
que ele simulou, disseram.
Neymar em lance no qual o árbitro marcou pênalti e depois voltou atrás após consultar o assistente de vídeo - Eduardo Knapp/Folhapress |
Só por isso podemos perceber que a tecnologia não é totalmente objetiva, pois as regras do futebol, nesses casos, são interpretativas. Destarte, não é possível conceder à tecnologia a solução de todos os problemas que cercam a arbitragem. Outrossim, jogadores pensarão em formas, a partir de agora, de como realizar movimentos que atendam a seus objetivos, e que serão capturados por diversas câmeras, não apenas pelos olhos do juiz. Por outro lado, o desempenho do árbitro também muda, pois as chances de ele acertar são maiores. Caso algum lance seja perdido pelos olhos em determinado momento, haverá uma segunda chance de revisão. Portanto, não há como a importância do árbitro central ser diminuída.
Logo, o árbitro de vídeo é um
mediador, não um instrumento já disposto previamente de essência. Portanto, não
há essência, e actantes humanos e não-humanos assumem determinados papeis a depender
das associações que se constituem em determinada ação, segundo André Lemos em
referência à teoria ator-rede. O VAR pode, inclusive, não ter mais essa função
no futuro, pois a tecnologia pode ser modificada pela FIFA, ou até mesmo
limitada a não interferir em campo – para não dizer excluída de vez do futebol,
afinal não há definição ad eterna a um objeto, mas sim associações.
O que se discute hoje sobre o
tema parte da premissa que houve uma grande mudança no futebol por conta do
árbitro de vídeo. E é aí que existe um equívoco. Não é errado dizer que o VAR
causou uma revolução no futebol, vide os lances que foram revistos na
competição futebolística mais importante do planeta, desde que não se atribua
toda a atenção apenas à tecnologia. A “revolução” da tecnologia existe apenas quando
há associação com outros actantes – neste caso os membros que operam o sistema
e passam as informações ao árbitro principal em campo.
Por outro lado, também não pode
existir a busca cada vez maior pelo acerto com ação puramente humana, afinal o
ser humano é passível de erros. A busca pela “perfeição” – deve-se entender
aqui índices de erros cada vez menores – não vem quando apenas um ator dessa
rede atua, mas sim quando há as já destacadas associações estabelecidas. Um bom
exemplo é a polêmica em torno do árbitro de linha, como é chamado o auxiliar
que fica atrás do gol. Pela Confederação Brasileira de Futebol, a ele é dada a
responsabilidade de dar a palavra por tudo o que acontece na linha embaixo do
travessão, quando a tecnologia poderia ser muito mais eficiente.
Um exemplo é o erro cometido por
um auxiliar foi no Campeonato Carioca de 2014. Na ocasião, o auxiliar, a poucos
metros do lance, não validou um gol legítimo marcado por Douglas, do Vasco,
contra o Flamengo, quando a bola entrou 33 centímetros em cobrança de falta
após bater no travessão.
Douglas, do vasco, marca de falta, mas árbitro não vê bola passar da linha do gol. Foto: Reprodução/YoutTube - canal NNS FILMES |
Outro, mais recente, é de 2017, quando Jô marcou de braçocontra o Vasco (a presença do cruzmaltino duas vezes aqui é apenas coincidência) pelo Brasileirão. O auxiliar, também muito perto das traves, ignorou a irregularidade.
Mesmo com a imagem, Jô alegou que "não sentiu" o braço encostar na bola. Foto: Reprodução/YouTube |
Logo, a ação (neste caso a manutenção ou reversão de uma decisão do árbitro) deve existir pelas associações de elementos que em determinados momentos atuarão como mediadores, não com o poder destinado a apenas um actante.
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