segunda-feira, 2 de julho de 2018

O que seria da tecnologia no futebol sem ninguém para operá-la?


Foto: Getty Images


Muito se tem discutido sobre o árbitro assistente de vídeo (do inglês VAR – Video Assistant Referee) e a influência desta tecnologia na Copa do Mundo da Rússia. Neste post vamos destrinchar como a novidade não pode cumprir seu papel sozinha e, ao mesmo tempo, porque a figura humana não será diminuída por conta dessa implantação, com base na teoria ator-rede, iniciada na década de 80, na qual teve como um dos principais responsáveis o antropólogo francês Bruno Latour.

Sendo assim, a princípio, temos que entender o que é um objeto (ou um artefato). Pensar que um objeto é apenas uma ferramenta não é nada absurdo. Consequentemente, é comum imaginar que essa é a essência do objeto. Todavia, um item não é apenas uma mera ferramenta ou meio para realizar uma ação imaginada e, consequentemente, fabricada com este fim. De acordo com a teoria ator-rede, os objetos não possuem essência e, desse modo, podem exercer diferentes papeis a depender das associações criadas.

Dessa forma, nesta teoria, o ator é definido a partir do papel que desempenha nas relações onde estão envolvidos, sendo que os atores podem ser seres vivos, materiais ou instituições. Por conta dessa variedade de opções que podem desempenhar a função de ator, em conteúdos dessa teoria muitas vezes é utilizado o termo “actante”, pois é visto como uma forma neutra e evita a relação de que os agentes só podem ser humanos. Já a rede representa as conexões onde os atores estão envolvidos.

Actantes humanos e não humanos (dispositivo inteligente) agem mutuamente e influenciam no comportamento um do outro, com a diferença que o actante não humano pode ser ajustado pelo humano de acordo com a necessidade dele. Ou seja, já que um pode influenciar no comportamento do outro, o objeto pode alterar a forma de pensar e agir do humano. Por conta disso, o objeto, nesse caso o videoárbitro, deve modificar a performance não só dos jogadores em campo como também o desempenho do árbitro principal.

A partir de agora, em competições em que o VAR é utilizado, os jogadores deverão pensar duas vezes para agir dentro da grande área – não só os defensores como também os atacantes. Isso vale até mesmo para a própria performance que se deve fazer ao sofrer um pênalti. Na partida desta Copa do Mundo entre Brasil e Costa Rica, por exemplo, um pênalti, que foi considerado legítimo por muitos comentaristas, não foi marcado em Neymar. O árbitro principal recorreu à visualização na tela e negou a penalidade máxima. A justificativa dos que defendiam a existência da falta? Neymar abriu muito os braços e isso confundiu a arbitragem, dando a entender que ele simulou, disseram.

Neymar em lance no qual o árbitro marcou pênalti e depois voltou atrás após consultar o assistente de vídeo - Eduardo Knapp/Folhapress

Só por isso podemos perceber que a tecnologia não é totalmente objetiva, pois as regras do futebol, nesses casos, são interpretativas. Destarte, não é possível conceder à tecnologia a solução de todos os problemas que cercam a arbitragem. Outrossim, jogadores pensarão em formas, a partir de agora, de como realizar movimentos que atendam a seus objetivos, e que serão capturados por diversas câmeras, não apenas pelos olhos do juiz. Por outro lado, o desempenho do árbitro também muda, pois as chances de ele acertar são maiores. Caso algum lance seja perdido pelos olhos em determinado momento, haverá uma segunda chance de revisão. Portanto, não há como a importância do árbitro central ser diminuída.

Logo, o árbitro de vídeo é um mediador, não um instrumento já disposto previamente de essência. Portanto, não há essência, e actantes humanos e não-humanos assumem determinados papeis a depender das associações que se constituem em determinada ação, segundo André Lemos em referência à teoria ator-rede. O VAR pode, inclusive, não ter mais essa função no futuro, pois a tecnologia pode ser modificada pela FIFA, ou até mesmo limitada a não interferir em campo – para não dizer excluída de vez do futebol, afinal não há definição ad eterna a um objeto, mas sim associações.

O que se discute hoje sobre o tema parte da premissa que houve uma grande mudança no futebol por conta do árbitro de vídeo. E é aí que existe um equívoco. Não é errado dizer que o VAR causou uma revolução no futebol, vide os lances que foram revistos na competição futebolística mais importante do planeta, desde que não se atribua toda a atenção apenas à tecnologia. A “revolução” da tecnologia existe apenas quando há associação com outros actantes – neste caso os membros que operam o sistema e passam as informações ao árbitro principal em campo.

Por outro lado, também não pode existir a busca cada vez maior pelo acerto com ação puramente humana, afinal o ser humano é passível de erros. A busca pela “perfeição” – deve-se entender aqui índices de erros cada vez menores – não vem quando apenas um ator dessa rede atua, mas sim quando há as já destacadas associações estabelecidas. Um bom exemplo é a polêmica em torno do árbitro de linha, como é chamado o auxiliar que fica atrás do gol. Pela Confederação Brasileira de Futebol, a ele é dada a responsabilidade de dar a palavra por tudo o que acontece na linha embaixo do travessão, quando a tecnologia poderia ser muito mais eficiente.

Um exemplo é o erro cometido por um auxiliar foi no Campeonato Carioca de 2014. Na ocasião, o auxiliar, a poucos metros do lance, não validou um gol legítimo marcado por Douglas, do Vasco, contra o Flamengo, quando a bola entrou 33 centímetros em cobrança de falta após bater no travessão. 

Douglas, do vasco, marca de falta, mas árbitro não vê bola passar da linha do gol. Foto: Reprodução/YoutTube - canal NNS FILMES 

Outro, mais recente, é de 2017, quando Jô marcou de braçocontra o Vasco (a presença do cruzmaltino duas vezes aqui é apenas coincidência) pelo Brasileirão. O auxiliar, também muito perto das traves, ignorou a irregularidade.

Mesmo com a imagem, Jô alegou que "não sentiu" o braço encostar na bola. Foto: Reprodução/YouTube

Logo, a ação (neste caso a manutenção ou reversão de uma decisão do árbitro) deve existir pelas associações de elementos que em determinados momentos atuarão como mediadores, não com o poder destinado a apenas um actante.



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