segunda-feira, 23 de abril de 2018

"Não entendi nada do que você falou"



Caneta, chapéu, bicicleta. Esses são alguns termos comuns no vocabulário de qualquer amante de futebol. Para aqueles que acompanham o esporte, a associação dessas palavras com o jogo é praticamente automática. Para quem não acompanha, essas palavras não querem dizer nada a não ser aquilo que realmente significam. Por exemplo, para um leigo em futebol, a palavra “caneta” remete apenas ao objeto que contém um depósito de tinta usado para escrever, desenhar ou rabiscar. Mas, para o “boleiro”, caneta quer dizer colocar a bola entre as pernas do adversário.

Esse não é um fenômeno presente apenas no futebol. No basquete, por exemplo, o termo “crossover” quer dizer finta, ou drible. Já para os apreciadores de ficção, o termo significa a junção de personagens, ou cenários, ou acontecimentos que pertencem a produtos que anteriormente eram diferentes. O termo também pode ser utilizado por entusiastas automotivos para definir os veículos fabricados utilizando a base de um carro de passeio com adaptações para adquirir características de um SUV.

Hoje existe uma discussão muito grande dentro do jornalismo esportivo por conta da utilização de termos que deixaram de comunicar. Como em qualquer linguagem, algumas expressões começaram a ser taxadas como “ultrapassadas”, e alguns jornalistas que ainda insistem em utilizá-las são muito criticados. Se, por exemplo, algum comentarista falar em uma transmissão que “o ponta de lança passou com facilidade pelo beque central”, provavelmente a sensação daqueles que ouvirem o comentário será de estranheza, e talvez a informação não chegue com clareza. Os códigos precisam ser atualizados a todo o momento, caso emissor e receptor desejem manter o canal em funcionamento.

Sendo assim, pode-se afirmar que a linguagem dos esportes, assim como qualquer outro assunto, é um processo artificial, faz parte da comunicação humana. Vilém Flusser explica que esse processo é feito de uma maneira não natural, pois na fala humana não são produzidos sons naturais como o canto dos pássaros; baseia-se em descobertas e símbolos organizados em códigos. Contudo, é comum o homem esquecer essa artificialidade da sua própria linguagem, que, por ser utilizada frequentemente há quase um século, passa a ser absorvida naturalmente por aqueles que se interessam pelo assunto.

Por conta dessa “falsa naturalidade”, não é raro encontrar alguma pessoa que não conhece algum termo, ou, no cenário mais oposto, dizer que “não entendeu nada” sobre uma conversa de futebol que ouviu por estar no mesmo ambiente de entusiastas futebolísticos. Uma representação clara desse exemplo pode ser encontrado na própria universidade, seja em participações na aula com relações feitas por alunos entre o tema debatido pelo professor e uma vertente do jornalismo, seja em uma conversa informal no mesmo ambiente acadêmico. É em um tipo de situação como essa que o homem que não percebe a artificialidade do código futebolístico passa a ter noção de como a linguagem específica que utiliza para o tema não é universal.

Ademais, Flusser acredita que os códigos determinados pelas linguagens são um tipo de mecanismo utilizado pelo homem para lutar contra a vida sem sentido. Ele diz que o homem é um animal solitário que é incapaz de viver na solidão, pois é o único que tem consciência da própria morte. Logo, os códigos presentes no universo esportivo são artifícios técnicos que proporcionam a inclusão. Se alguém sentado numa mesa de bar pergunta o resultado de determinada partida ao garçom, eles começam a conversar sobre aquele assunto, o que gerará a interação e, momentaneamente, a superação do medo de ficar sozinho. A natureza é algo que o homem não entende, já os códigos foram criados pelo próprio homem, o que gera uma sensação irreal de segurança e paz interior.

0 comentários:

Postar um comentário

Total de visualizações

Pesquisar este blog

BTemplates.com